terça-feira, 26 de março de 2013

O DEUS DOS MISERÁVEIS



O Deus Dos Miseráveis
por
Castro Lins

"No último julgamento Cristo nos dirá: Vinde, vós também! Vinde, bêbados! Vinde, vacilantes! Vinde, filhos do opróbrio! E dir-nos-á: Seres vis, vós que sois à imagem da besta e trazem a sua marca, vinde porém da mesma forma, vós também! E os sábios e prudentes dirão: Senhor, por que os acolhes? E ele dirá: Se os acolho, homens sábios, se os acolho, homens prudentes, é porque nenhum deles foi jamais julgado digno. E ele estenderá os seus braços, e cairemos a seus pés, e choraremos e soluçaremos, e então compreenderemos tudo, compreenderemos o evangelho da graça! Senhor, venha o teu reino!"

Fyodor Dostoievski, em Crime e Castigo


            Mesmo consciente que sou uma pessoa facilmente impressionável, assistir Os Miseráveis - produção cinematográfica inspirada no famoso livro de Victor Hugo – foi como encontrar-me fora de mim, enquanto deixava-me levar embora pela música. Poucas vezes ao longo da vida permiti esse adentrar sem reservas, com seus adendos tão profundos de canções em minh’alma. Nesta obra o cinema revelou o poder das três maiores forças do mundo: A Palavra, a Imagem e a Canção. Estas criaturas vivas, quando reunidas com maestria, encontram o ser humano em seu todo e movem-se dentro dele, levando-o as regiões mais remotas do sagrado, do soneto misterioso, do fascínio que envolve a vida e tudo que é posto além dela.

                Este clássico adaptado às filmagens pôs- me diante da tristeza, todavia, vi esta em sua face mais bela. Não se admire quando o belo vestir-se de tristeza, pois estas são suas melhores vestes. O mais longe que a beleza se deixou conhecer o fez pelos caminhos da tristeza. Envergonhado chorei perante a dança destes seres suaves, o belo e o triste. O que direi mais, além das confissões de minhas lágrimas? Direi também que nunca me esquecerei de Dreamed A Dream“ há sonhos que não podem ser, tempestades que não podemos prever”. Mas não contente ainda, posso também falar que reconheci neste filme meus próprios conceitos de poesia, dois, a saber: Vi a realidade sem encantos visto que ela é dor e, vi os sonhos mais lindos, estes que só  a realidade do sofrimento pode gestar dentro de si. Em outras palavras, li, vi e ouvi o sofrimento inegável que concretiza o ser da vida, uma descrição fiel da realidade ao meu redor que, magicamente, ao mesmo tempo, misturava-se com os anseios de Deus, os sonhos de revolução, o doar-se último do perdoar, e, finalmente, a boa ventura do amor que não é crível. Contanto me pergunto como podem conviver estes dois mundos tão opostos em uma só história. Posso aceitar tal dança? A vida e a morte como um casal de namorados?

                A pulsão de morte que Freud tanto observou, ora, também a vi ali dramatizada e cantada para mais fundo conhecer-me. A vi em suas trevas com clareza, porém, tão clara quanto a pulsão da vida que se move tão bem tanto em revoluções armadas, quanto em cartas de amor. Agora, outra vez duvido: pode esta pulsão de vida, ensinada por Victor, encarnar-se em algo tão contrário a si tal como o sacrifício? Ora, certamente, eu diria ser ela, a pulsão de vida, a força última para todo o sacrifício. Diria mais, ela é o trabalho que não se deixa impedir pelo desalento que nos fere. E ainda diria ser ela a fé que contempla o céu como se fosse a própria terra e o desfruta antes da sua chegada como se fosse chegado, que transforma seus simples anúncios em realidade, seus anseios em lutas do presente. As revoluções são os sintomas dos adoecidos pelos mais ternos sonhos. O amor é o privilégio daqueles tomados pelo ideal e não pelo real. E a fé, por sua vez, é a força incondicional que move o homem para o ideal e o verá real, um dia, seja nesta vida ou seja nesta morte.

                A fé que não revoluciona, pode ela, estagnada, deparar-se com o amor um dia, ou com o céu acima de nós? Não creio que pode! Assistir Os Miseráveis é examinar onde esse céu foi perdido, ou onde a fé estagnou, ou mais, é perguntar pelo que lutamos hoje, de modo que continuam os miseráveis por onde quer que se queira encontrá-los. Mas - claro que já me fiz essa pergunta - não foram tais revolucionários mortos nessa história? Na dança entre as pulsões da vida e da morte, a vida não passará de um sonho fadado a se esvair ao primeiro despertar da cruenta realidade. E sempre por fim, os miseráveis continuam a comer a migalha que se mistura e se confunde a suas esperanças... O que direi para negar essa triste verdade? Não há cego que não possa vê-la, e nem os loucos negam o sofrimento. Realmente não há o que dizer. Apenas posso, aos miseráveis dessa vida, partilhar a esperança que me resta:
 
           "Um dia ouvi falar do Deus dos miseráveis, este, fora quão maltrapilho quanto qualquer um de nós. Sei que existe por demais inverdades que percorreram os séculos, de forma tal, a falar que Ele era o Deus dos doutos, respeitáveis, puros, burgueses e poderosos desse mundo... No entanto, meus irmãos, não vos deixeis abater com tamanha mentira. Os revolucionários lutam por esse mundo, mas recebem como prêmio um outro, um além da barricada. Felizes sois vós miseráveis, humildes de espírito, vós que choram toda noite a dor que vos é imputada pela vida. Vós sois felizes, pois a vossa fome e a vossa sede é de pão, de água e de justiça sobre a terra e vós sereis fartos! O Deus dos miseráveis vos será misericordioso, pois vós conheceis a miséria do vosso irmão. Bem aventurados sois vós porque lutam pela paz, ainda que lutem, pois a ausência de luta em um mundo de opressão não pode ser chamada de paz. Felizes sois, ainda que mortos na busca pela justiça. Dirão todo mal a vosso respeito, mas, meus irmãos, não desacrediteis da vossa bem- aventurança. Miseráveis, alegrem-se a despeito da vossa tristeza e dor, pois vosso é o Reino dos Céus – assim disse uma vez o Deus dos miseráveis." 
 
 
   Os sonhos sempre serão imprescindíveis, seja para essa vida ou para outra por vir. Um dia virá em que o Deus dos miseráveis, Jesus Cristo, cantará com os seus para seu próprio louvor:
 
Você Ouve As Pessoas Cantarem?


Você ouve o povo cantar?
Cantando a canção dos homens furiosos
Essa é a música de um povo
Que não será escravo novamente


Quando a batida do seu coração
Ecoa na batida dos tambores
Há uma vida prestes a se iniciar
Quando a manhã chegar


Você vai se unir a nossa cruzada?
Você será forte e ficará comigo?
Além da barricada
Há um mundo para se ver por muito tempo?
Então junte-se à luta
E você ganhará o direito de ser livre...
 
 


         
 

sexta-feira, 8 de março de 2013

SALTOS


 

SALTOS
 
Não quero começar com meus já típicos exageros e palavras vagas, no entanto, há de convir que, às vezes, é bom invadir outros mundos. Exagerar é um êxtase necessário. Por isso faço meu esse direito a partir do parágrafo seguinte. Esse direito, o terei até que ele finde, até que a fuga das palavras seja inevitável, até que eu indesviavelmente necessite retornar a minha cruenta realidade, porém, até lá, serei um sonhador como ensinas a ser.

Ó Deus salve os momentos de sonho! O que são estes, senão instantes raros que saltamos de dentro de nós mesmos? Neles transcendemos o real e nos deparamos com tudo que se encontra para além... a saber: Deus em sua dança a três, ou o amor nunca detido as margens do crível, a afeição mais terna, a amizade mais fiel, a dor interrompida, os anseios de perfeição, ou até, e por que não, a eternidade? Os litúrgicos cultos eclesiásticos também se dão, de tal modo, a essa mesma premissa. Ora, a arte, tal qual o oficio sacro, se faz o trampolim que proporciona e propulsiona esses mais belos saltos, se faz o êxtase que nos chama para fora de nós, os portais que separam a terra dos céus! Claro, por certo, alguns trampolins nos mantém mais tempo no ar, saltos longos, curtos, outros tão fortes que nos sentimos voando. Enfim, quero dizer-te que existem diversas formas de saltar em direção as coisas do alto, aquelas que Jesus afirma ser o nosso maior tesouro.

Como não recordaria aqueles saltos melhores, em que nos lançamos juntos e ficamos por horas perto do Alto antes de cair? Realmente, como esquecê-los? Deus seria mesmo pequeno se encontrado tão somente em celebrações e igrejas. Nossas risadas mais sinceras são orações involuntárias. O choro a dois, ou mais, é o louvor suave que inclina o próprio Deus, este desejoso para ouvir seus filhos. Se dois ou mais partem o seu pão e dosam-se de vinho, logo saltam por entre o passado e o por vir, saem de si para comer a mesa com o seu Cristo.

Os bons momentos que se foram... Foram porque ninguém permanece para sempre no ar. Essa é a regra dos trampolins: sempre caímos de volta. Alguns saltos são arriscados demais e dignos de palmas, e quem dera ficar no ar para sempre! Quero agradecer a todos vós que um dia saltaram bem alto comigo, seja no espaço da clausura dos templos, ou nos voos sem escala da poesia, ou ainda nas alegres ceias em bares cariocas. Não obstante, seria tolice discordar que os saltos entre amigos são as mais autênticas celebrações a vida e ao seu Autor, são os reais protestos daqueles que insistem em viver, ser e sorrir apesar das inegáveis dores dessa vida. São lugares seguros onde guardamos nossas esperanças, estas que furtivamente se perdem quando não bem protegidas. Os amigos são os protetores dos sonhos, evitam que estes se apaguem como a fumaça no ar. Ceamos a cada reencontro, e ao abraço mais forte. Bem aventurados sejam os amigos!

Não quero de modo algum incitar um palavreado que pouco se assemelha com a realidade, pois sei do meu inacabamento e, ainda mais, das sombras que carrego... ora, mas não é por isso que saltamos com todas as nossas forças? Saltamos por aspirar voar um dia, e quem sabe não conseguiremos?  Pretendemos a cada salto voltar renovados para pisar o nosso chão com mais firmeza, imbuídos, porém, com a alma dos pássaros. Não quero, com isso, dizer que não nos machucamos. Ora, da mesma forma que saltamos também caímos e, às vezes, fora do trampolim. O homem alimenta esperanças que nunca deveriam ser gestadas e, tão logo, chega a parada mais inevitável na estrada vida, a saber: a decepção. E se não fosse assim, também não seria a vida, não seria esse mundo, pois, não há como escapar do risco do tombo e também do medo do salto, ou dos infortúnios machucados tratados a mertiolate. Todavia, por isso não saltaremos? Abriremos mão dessa maravilhosa sensação? De modo algum! A despeito de tudo, saltaremos... Até que Deus faça de nós pássaros que saibam voar para ele.

 

Castro Lins