sábado, 23 de janeiro de 2010

Desceu ao Hades


A professora de português acabara de entrar na sala... Lá vinha ela com seus exercícios chatos sobre orações coordenadas e análise sintática. Fui sinceramente incapaz de perceber alguma utilidade naquelas aulas. Ela passou de mesa em mesa, distribuindo cópias de uma folhinha que conquistou minha atenção pelos versos e minha antipatia pelos posteriores exercícios. Depois daquele dia, guardei comigo aquela folha de A4 por alguns bons anos. Por fim, envelhecida, ela amarelou. Hoje, ao lecionar, vejo-me com o dever inquieto de repassá-la:


Oração Sem Nome


O autor desse poema, quem o sabe? Foi encontrado em pleno campo de batalha, no bolso de um soldado americano desconhecido. Do rapaz estraçalhado por uma granada, restava apenas intacta esta folha de papel:


Escuta, Deus:
Jamais falei contigo.
Hoje quero saudar-te. Bom dia! Como vais?
Sabes? Disseram-me que tu não existes,
E eu, tolo, acreditei que era verdade.
Nunca havia reparado tua obra.
Ontem à noite, da trincheira rasgada por granadas,
Vi teu céu estrelado
E compreendi então que me enganaram,
Não sei se apertarás a minha mão.
Vou te explicar e hás de compreender.
É engraçado: neste inferno hediondo
Achei a luz para enxergar o teu rosto.
Dito isto, já não tenho muita coisa a te contar:
Só que... que... Tenho muito prazer em conhecer-te.
Faremos um ataque à meia-noite.
Não sinto medo.
Deus, sei que tu velas...
Ah! É o clarim! Bom, Deus, devo ir embora.
Gostei de ti... Vou ter saudade... Quero dizer:
Será cruenta a luta, bem sabes,
E esta noite pode ser que eu vá bater-te à porta!
Muito amigos não fomos, é verdade.
Mas... Sim, estou chorando!
Vês, Deus, penso que já não sou tão mau.
Bem, Deus, tenho que ir.
Sorte é coisa bem rara:
Juro, porém: já não receio a morte.



“As mais belas orações de todos os tempos”



É difícil, e ao mesmo tempo curioso, entender o que aconteceu com esse soldado. Quando se caminha pelas veredas do inferno, a última pessoa que esperamos encontrar é Deus. Esse encontro foi no mínimo surpreendente. Estive a refletir um pouco sobre a vida e suas dores: Há um enorme sofrimento, tanto quanto o azul suave do céu, ambos, sobre nós.

A uma certa idade, a criança depois de muito chorar e mesmo assim ser ignorada, cessa o choro e tenta, sozinha, solucionar os seus conflitos. A dor dos escombros de um mundo em pedaços fez muitos enxergarem apenas uma ausência no espaço reservado a Deus. O resgate não chegou, elas tentaram sozinhas sair das ferragens e tratar dos ferimentos da vida. Para muitos envoltos a fatalidades quase infernais, o diabo ou qualquer outro ser que represente uma angústia ou dor, faz-se mais crível que o próprio Deus.


Eu era mais um adolescente brasileiro, perturbado com minhas cotidianas crises depressivas, quando a guerra hedionda violentava as terras do Iraque... Com uma personalidade ainda incompleta, limitado para entender aquilo tudo, eu apenas chorava sobre a beliche do meu quarto de internato. Foi quando decidi, robótico, comparecer àquela inútil aula de português. Entre as orações coordenadas, interessou-me substancialmente aquela “Oração Sem Nome”, de autor desconhecido.


Sei que posso parecer irracional, todavia, por mais irônicas que sejam minhas palavras, estou certo de que, por entre o sofrimento, Deus pode revelar seu amor; e, se fosse diferente, creio não haver necessidade de uma cruz e um Deus pregado nela. Devo convir que Deus não retira de nós em totalidade a dor a qual estamos sujeitos, ao invés, Ele sujeita-se a ela junto a nós, de livre vontade. E, se antes Deus parecia distante, ausente de toda confusão e calamidades que vivemos, a ponto de alguns negarem sua existência... agora, Ele parece próximo, imerso nas mesmas dores, fazendo sua existência tão clara quanto à existência de um Pai protetor em tempos de guerra. Provando a todos que quiserem tocar nas feridas de suas mãos, que Ele é mais que a figura invisível de um fantasma, e tão real quanto eu e minha carne que sofre. Provando Sua presença no escorrer de cada lágrima salgada... Na solidão, talvez a me ouvir na cama de cima da minha beliche.



Havia um filho, criminoso, destinado à prisão, e um pai justo empenhado, até o fim, a manifestar seu amor pelo filho. Ele tinha o poder de interferir nesse destino doloroso do filho e negar a justiça, ou, simplesmente, deixá-lo sofrer justamente pelos seus erros. O pai resolveu perdoá-lo sem reservas, todavia não interferiu nas consequentes aflições recorrentes aos crimes de seu filho. Por fim, de livre escolha, o pai resolve tomar para si o mesmo lastimoso destino do filho; ambos, juntos, foram presos e aguardavam em meio a aflição do cárcere, o dia da justa liberdade. Essa foi a forma pela qual o pai escolheu manifestar seu amor. Não creio que Deus seja limitado demais, frágil ou fraco para deter as sombras do sofrimento, penso apenas na melhor e mais justa forma para manifestar tão eminente amor.

O que o jovem Michael conhecia da vida era apenas uma face deteriorada: os abusos do padrasto, a pobreza, as drogas, o suicídio. Ele, outrora, nunca poderia ao menos imaginar os compassivos negros olhos, de tom semelhante à cor da pele, daquele senhor que conheceu na noite da sua horrível overdose. Após sucessivas dores mórbidas, Michael estava caído, febril, em qualquer calçada, quando o senhor Jonas colocou-lhe em seus ombros largos e o levou para sua casa - um banho quente e também alguns antitérmicos, um forte café e um suave pão. A dor deu a Michael a oportunidade de experimentar o aconchego de um lar onde mora até hoje e, sobretudo, Michael ganhou um pai naquela noite.

A despeito dos jardins e suas flores, sorrisos infantis inspiradores, da esperança bem protegida que guardamos na alma... A despeito do belo, todos os que choram testemunhariam contra minhas palavras se eu ousasse insinuar um pleno estado de felicidade nesta vida; na verdade, o que temos são relâmpagos, clarões de luz numa noite escura e tenebrosa. E, se mesmo assim, houvesse múltiplas razões para sorrir, meu sorriso perderia a cor desbotado pela lágrima de algum aflito. Apenas se vivêssemos numa bolha, isolados da realidade, apenas assim, poderíamos pregar um pleno estado de alegria nesse mundo, mais parecido, no entanto, com um conformismo covarde. Quero dizer que é simplesmente difícil sorrir enquanto muitos choram.

Mesmo que as estrelas nos apontem a felicidade, somos como aquele simplório soldado contemplando o céu de uma trincheira rasgada por granadas. E a seriedade cômica consiste exatamente nesse inferno hediondo, lugar esse onde o Pai reside, apenas para estar próximo de seus filhos. Ele nunca abandonou os presídios, senzalas, campos de guerra, favelas, escombros, o escuro sombrio do meu quarto... Ele nunca nos deixou à mercê do acaso. Sua presença comprova- se em seu amor e consolo entre os prantos do dia a dia, em sua escolha cega pelos excluídos e feridos dessa funesta guerra da vida. Deus não escolheu a dor, antes, sujeitou-se à mesma dor que nós escolhemos. Deus não escolheu a morte, porém entregou-se à morte destinada a nós. Essa é a prova incontestável, não somente de sua existência; além do imaginável, é o veredito da sua compaixão... Certo disso, em partida para a cruenta luta à sua espera, o soldado encerra sua oração: “Juro, porém: já não receio a morte”.

Castro Lins



Para onde me irei do teu Espírito, ou para onde fugirei da tua face?
Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também.
Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá.( salmo 139)



Em qualquer lugar no espaço, Deus permanece com seus filhos... ainda que soterrados entre os escombros de um terremoto. Deus Abençoe o Haiti!

22/01/2010

2 comentários:

  1. A cada dia que se passa eu fico mais encantada pelo que você escreve...
    São palavras bonitas que toca m'alma..
    abraços.....
    Muito sucesso para você querido....

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  2. oi Castro POeta !!! amei encontrar seu blog, não sei se vc lembra de mim, mas sou Jácy, de Alagoinhas, estudante de Letras, eu tinha seu orkut, só que perdi minha conta, fiz outro, agora é jacyoliveirah@gmail.com, me add, amei seu blog mesmo, aproveita e visita o meu tá, um abraço!!

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