Um Dia Especial
Fui amigo de um rapaz chamado Levi. Ora, para evitar suspeita, ou dúvidas sobre a veracidade das minhas palavras, devo acrescer que ele foi apenas um conhecido, ou ainda, talvez, somente uma história, seja como julgar melhor o leitor. Sei que não deveria eu ousar tanto quando falo a respeito de uma dor que, em seus mais aspectos, simplesmente desconheço. Todavia a narrativa é curta demais para que ofenda quem a ler, essa relis historinha não passa a ser mais do que é, a saber: insignificante! Porém, no fim, alguém a de convir comigo, a despeito de todo o meu amadorismo, e encontrar por entre seus melhores conselhos essas palavras inacabadas.
Levi foi um rapaz que descobriu um invasor mortal em seu corpo, este o invadiu em idade inoportuna, pois meu amigo ainda era um jovem moço quando soube que fora acometido – não sei se essa última é a melhor palavra a se usar – por um câncer que lhe deixou apenas com alguns
outros poucos dias de vida. Claro que deves, amigo leitor, estás a pensar que nenhuma novidade há nessa historinha proposta, afinal, muitas são as pessoas que sofrem com câncer ou outras doenças terríveis, e todos já sabem como se sucedem e até como terminam tais histórias. Ora, meu leitor, não estou eu ciente de tais perigos literários? Ainda mais, posso dar- te garantias que o último dia de vida desse rapaz é digno de relato meu – escritor de um blog quase nunca acessado - em uma página ou duas no máximo, dependendo da minha pobre criatividade. No entanto, voltemos ao Levi em seu derradeiro dia de vida:
Aproximavam-se às nove da manhã
quando acordou em uma cama de hospital público, estava vigiado apenas por uma enfermeira obesa de meia idade que parecia não saber como sorrir. Às nove horas e quarenta e cinco minutos sua mãe apareceu por entre as portas. Ela ficara sabendo, há poucos dias, que o filho, pobrezinho, estava nas últimas e quando soube fez o que nunca havia intentado nem em seus surtos de coragem: desafiou o marido e sua usura, fez-lo pagar as despesas com a longa viagem e ainda exigiu dele muito dinheiro, baseada na crença inocente que o filho ainda poderia ser curado se, despeço daquele fétido lugar público, transferido para um bom hospital de usura tal a do seu marido.
Ah caro leitor, pensas que o que narrei até agora não te impressionas em nada, não é verdade?
Mas é porque tu não conhecias essa mulher pacata que mais parecia uma serva passiva do seu marido, porém por um dia, não mais do que isso, o que para minha história é bastante, essa mulher enfrentou o senhor que por uma vida a oprimiu e viajou dias para encontrar o filho e, por uma única vez, recolhe-lo em seu colo magro. Seu corpo quase sem força estava infantil no colo servil da sua mãe, foi o que Levi desejara por a vida que já estava a se findar.
Às onze horas, a surpresa de Levi não poderia ser comparada a nada que um dia surpreendeu esse escritorzinho de blog, por isso, paciente leitor, sinto dificuldade em descrever esse momento, mas tentemos: Levi não conheceu seu pai - até aquele instante - este deixou sua mãe após rejeitá-lo ainda bebê. Ser rejeitado antes de nascer é como ser julgado antes mesmo de cometer o seu crime, mas prometi não me alongar e não vou estender mais essa história com as tantas metáforas que agora me vêem a cabeça. Sei que tu, leitor, és empático o suficiente para recriar para ti o sentimento sem precedentes de nunca ter conhecido o seu pai, mas naquele dia último tudo se desfez como se a morte fosse capaz de apagar os ressentimentos e culpas, e foi aproximadamente isso o que aconteceu: Levi experimentou a sensação, que não consigo contar em detalhes, de abraçar pela primeira vez o seu pai que, mesmo que após anos, naquele dia foi ao seu encontro.
Quero pedir perdão se dei a entender que, antes desse dia miraculoso, Levi se encontrava sozinho nesse mundo, sinto muito se não fui claro. Para me reparar, devo lembrar-me de alguém. Uma doce e meiga garota que estava, como sempre esteve, ao seu lado: antes e durante a internação. No dia da sua morte foi a primeira a sentir sua pele fria sobre as mãos. Sim! Essa por certo essa é a melhor resposta aos seus pensamentos, meu querido leitor, por isso deixa-me repeti-la com mais clareza: Sim, com certeza ela o amava de modo sincero, claro, por isso ele não deveria queixar- se com Deus alegando que nunca fora amado... seria o mesmo que mentir após a morte, se isso for possível.
Oh não! Esqueço-me de uma parte importante dessa história. Estou certo que alguém me repreenderia por contar um sonho feito de talvez, mas seria desonesto com os sonhos não contá-los unicamente por não serem reais ao meu juízo, não concordas? Deixe-me parecer ao menos honesto: Naquele
leito, naquele dia, na penumbra entre o a luz e as trevas da noite, outra personagem chegou para compor o dia. O sol raiara logo em seguida a entrada furtiva dessa moça no hospital, só sei dizer que ela tinha olhos tristes que o observavam de longe. Aproximou-se com uma lentidão crível e enquanto dormia o
meu prezado amigo, ela o beijou, tornou a beijar a única boca que a beijou até aquele - inefável - momento e depois, às cinco da manhã, depois de muito olhá-lo, se foi. Levi empobreceu minha história quando decidiu velar para si o nome desse sonho. Pareceu-me acreditar que não seria necessário, outra vez mais, acordar de seus belos sonhos, isso o fez feliz.
À tarde, já próxima do seu fim, trouxe antes de ir os seus irmãos, estes ficaram por tempo suficiente para recordar as inúmeras travessuras e brigas tolas, a mágica daquele dia transformou tudo em motivo de riso. Algumas tias queridas chegaram lá pelas cinco da tarde com alguns quitutes culinários, Levi provou tudo as escondidas e levou para o céu sabor adorável da comida das suas tias. Amigos tão virtuais que um dia se foram no tempo, também quase não cabiam naquele quarto dividido com outros dois doentes. Levi confessou que se o céu o deixar escolher sua própria alegria, ele iria reviver por lá os bons e divertidos dias, ainda que raros, ao lado dos amigos. As palavras realmente ditas, ou aqui inventadas por mim, se fizeram na hora sexta desse dia.
Às sete horas da noite pediam licença pela janela. Irmãos de sua pequenina igreja recitavam suas orações, talvez pela primeira vez ele as ouviu atento com olhar fito nos lábios que se moviam em petições. Ele riu para si e decidiu por fim ensaiar sua última oração e, por conveniência, fechou os olhos. Antes de findar à hora sétima, de um modo incompreendido a dor deixou seu corpo, devo, no entanto, pedir que não prossiga em sua credulidade, meu amado leitor, ao ponto de cogitar um milagre, pois não foi bem o que ocorrera naquele instante. Entretanto, para além do milagre Deus foi o seu último, e mais esperado, encontro de um dia especial.
Deus veio vê-lo antes do fim, ou do início se melhor calhar. Entre murmúrios de orações percebeu presenças, por fim sentiu morrer a solidão e, não por mais do que doces minutos que antecediam a morte, a vida se fez preenchida de significado. As tantas dúvidas o deixaram morrer em paz, o choro estava a tomar a todos, menos os olhos já fechados do meu querido amigo.
O que tenho a diferir nessa história, meu já intimo leitor? Nada em especial, a não ser por um dia somente. Pois por um dia, sinto só poder garantir um dia, meu amigo não esteve sozinho.
Estou a pensar, por agora, se foi o câncer ou em suma a morte responsável por proeza tal... não tenho respostas, mas se foi que seja! Se a vida se fez refém da presença da morte, o que fazer? Importa saber, porém, que antes que Deus se inclina- se para levá-lo consigo após a acre solidão dessa vida, o dia último de Levi, meu amigo, foi especial.
Se suas expectativas foram, meu leitor, de modo superiores ao que te ofereci, peço desculpas novamente. Isso foi tudo que Levi me deixou: um dia
especial.
especial.
Castro Lins
"(...) Porque o homem se vai à sua casa eterna, e os pranteadores andarão rodeando pela praça;” O Coélet